terça-feira, 2 de novembro de 2021

Por que algumas montadoras estão se referindo aos seus motores pelo torque?

Por Yuri Ravitz

Volkswagen foi a pioneira a anunciar o torque de seus motores no Brasil. Foto: Yuri Ravitz

A relação do ser humano com a quantidade das coisas é algo tão antigo quanto a própria humanidade em si. Desde sempre, aprendemos que "mais é melhor" para praticamente tudo na vida e, na maioria das vezes, isso até pode ser verdade. Acontece que o tempo passa, as coisas evoluem e, diante disso, nos deparamos com novos fatos/realidades que nos mostram uma nova perspectiva pela qual devemos analisar as questões que nos cercam.

Falando de carros, que é o nosso assunto aqui no site em 99% das vezes, nós aprendemos que "quanto maior o motor, mais forte será o carro". De fato, por muitas décadas, isso foi verdade e era motivo de orgulho para as marcas que ostentavam os grandes blocos que se abrigavam debaixo dos capôs de seus modelos. Não à toa, os americanos usaram as polegadas cúbicas (do inglês "ci", cubic inches) por anos em seus abrutalhados muscle cars para anunciar quão grandes (e, consequentemente, fortes) eram seus motores.

Polegadas cúbicas eram motivo de orgulho e ostentação nos antigos muscle cars. Foto: skater69412 no Twitter.

Com o passar dos anos e os avanços tecnológicos, os motores foram diminuindo (também por uma necessidade mediante acontecimentos diversos no mundo) e, com isso, a mania de compará-los pelo tamanho dos blocos foi caindo, embora, ainda não tenha sido completamente abolida. Falando do nosso país, onde a moda das polegadas cúbicas não colou, tornou-se comum usar duas especificações para medir se um motor era forte o bastante ou não: capacidade do bloco em litros e potência máxima divulgada pelo fabricante.

Como esses conceitos nunca foram desmistificados pelos próprios fabricantes de carros, o consumidor em geral seguiu o mesmo raciocínio de sempre: quanto maior o motor, melhor. Ou, quanto mais potência anunciada, mais forte ele é. Da mesma maneira ocorrida com as polegadas cúbicas para os americanos, os brasileiros associaram o desempenho de um carro ao tamanho do seu motor (em litros) e a quantos cavalos (de cv, cavalo-vapor) esse motor "tem".

Motor 6.2, ou 378ci, de um Mercedes-Benz C63 AMG que gera 457cv de potência máxima. Foto: Yuri Ravitz

O começo do fim

Os últimos dez anos foram fortemente marcados pelo começo da proliferação dos motores turbinados em todo o mundo - motores que utilizam um sistema de compressor de ar do tipo turbina para injetar mais ar no bloco, enriquecendo a mistura ar/combustível e, com isso, melhorando o desempenho consideravelmente. O advento dos turbocompressores permitiu que os fabricantes construíssem motores pequenos, mas que produzem potência e torque equivalentes aos de motores maiores com aspiração natural - que não usam nenhum artifício para injetar mais ar no bloco.

Esse foi o caminho que a indústria encontrou para obter motores com desempenho superior sem precisar apelar para blocos cada vez maiores e, de quebra, sem prejudicar o consumo de combustível, mantendo a eficiência energética. O problema é que tudo isso ainda é muito novo para as pessoas, principalmente para os brasileiros (que costumam ser avessos às novidades) que, desde o começo da nova tendência, torceram fortemente o nariz e levantaram questões que colocaram os pequenos turbinados em cheque, principalmente diante de carros mais caros equipados com motores pequenos.

Pague mais de 100 mil reais em um sedan com um pequeno motor 1.4 turbo... e ande mais do que qualquer 2.0 aspirado. Foto: Yuri Ravitz

Falando em português claro, as pessoas começaram a questionar "se um motor tão pequeno dá conta de um carro grande e pesado", afinal, a cultura de décadas passadas ensinou que carro grande tem que ter motor grande, pois motor pequeno é fraco e só serve para carro pequeno. Seguindo a mesma linha, muitos acharam absurdo desembolsar grandes quantias em carros caros e grandes com motores de capacidade cúbica tão baixa, antes vistos somente em modelos populares. Diante desse dilema, os fabricantes encontraram uma saída um tanto duvidosa, mas inteligente para anunciar seus motores: referir-se a eles pelo TORQUE máximo que produzem.

Mas afinal de contas, o que diabos seria "torque"? Quem é esse estranho que a indústria nunca apresentou ao público? Por que, de uma hora para outra, ele ganhou tanta importância nos carros mais novos e caros? Buscando explicar da maneira mais simples possível, torque nada mais é do que FORÇA em sentido rotativo, giratório. Torque é uma medida de força rotatória expressa em uma determinada distância e é por isso que as unidades que medem o torque são sempre acompanhadas de unidades de distância: quilograma-força-metro (kgfm), Newton-metro (Nm), libra-força-pé (lbf-ft) estão entre as mais utilizadas.

A Honda tinha o costume de usar motores que só manifestavam seus picos de potência e torque em giro muito alto, o que os deixou com fama de "sem torque" pelos brincalhões da internet. Foto: Divulgação

Se torque é força, então o que é potência?

Ao contrário do que muita gente pensa, POTÊNCIA não representa a força que um motor gera, mas sim, a quantidade de trabalho que ele realiza em certo período. Para ser mais claro, trabalho significa esforço realizado em um determinado tempo e, quanto mais potência um motor gera em tal faixa de rotação, menor será o tempo que ele levará para realizar determinado trabalho. Pense em uma pessoa apertando um parafuso: se ela apertar depressa, com movimentos rápidos e fazendo pouca força, estará gerando muita potência e manifestando pouco torque. Se ela apertar devagar, com movimentos lentos, mas fazendo muita força, estará gerando pouca potência, contudo, manifestará muito torque.

De um modo geral, os motores a combustão só manifestam seus picos de potência (que são os números sempre divulgados pelas marcas) nos regimes de rotação mais altos, pois é a lógica da coisa: não tem como um motor realizar muito trabalho se estiver girando pouco. Quando a montadora X ou Y diz que seu motor "tem XXX cavalos", o que ela quer dizer é que ele gera XXX de pico de potência em seu regime máximo de funcionamento. Nenhum motor "tem" cavalos de potência, pois potência é gerada de acordo com um determinado trabalho sendo realizado - no caso, o trabalho do funcionamento do motor. Do mesmo modo, o funcionamento do motor não é linear: ele é variável e tem faixas de giros (rotações por minuto - rpm), o que significa que essa potência de pico não está disponível o tempo todo como muitos pensam, mas apenas em determinado regime de rotações.

Dodge Challenger SRT Demon: potência e torque sobram no 6.2 V8 com compressor para ninguém botar defeito. Foto: Divulgação

Ok, mas por que as montadoras têm divulgado o torque e não a potência?

Por dois motivos: jogada de marketing e evitar repulsa do consumidor. A Volkswagen, por exemplo, adotou essa estratégia quando começou a trabalhar os motores 1.0 TSI, turbinados, para que o consumidor brasileiro não deixasse de comprar um carro de quase 100 mil reais por ter um mísero motor mil. A alemã adotou o codinome "200TSI", identificando-o através de letras na tampa do porta-malas, sendo que 200 é a medida do torque máximo em Newton-metro (Nm) - que dá 20,4 em quilograma-força-metro (kgfm). A jogada de marketing está na escolha dos números: 200 é maior do que 128, que é o pico de potência desse motor quando abastecido com etanol, então, faz mais vista diante do consumidor. Newton-metro não é uma unidade muito comum no nosso país, mas o público em geral não liga para isso: ter um número vistoso estampado no carro já é o suficiente.

A estratégia deu certo e a marca padronizou a nomenclatura entre os TSI: o 1.4 se chama "250TSI" (de 250Nm que dá 25,5kgfm) enquanto o 2.0 se chama "350TSI" (de 350Nm que dá 35,7kgfm). Recentemente, o grupo Stellantis fez a mesma coisa com sua linha de motores mais novos: o novo 1.0 turbo que estreou no inédito Pulse se chama "Turbo 200", enquanto o 1.3 turbo que estreou na reestilização do Toro se chama "Turbo 270" (na Jeep é T270) e, por fim, o 2.0 turbodiesel usado no Toro, Renegade, Compass e no novo Commander adotou as nomenclaturas TD350 e TD380 nos carros da Jeep - a última é exclusiva do Commander. A jogada caiu como uma luva, pois são modelos que custam de 150 até 300 mil reais e esses números fazem bem mais vista do que a potência máxima desses motores ou, para piorar na cabeça do consumidor comum, a capacidade cúbica deles em litros. Ninguém quer pagar quase 200 mil reais em um 1.3 (por melhor que seja), entretanto, ninguém liga de desembolsar isso em um T270 - é psicológico, cultural.


Entendi. Isso é bom?

É ótimo, pois está ensinando ao público o que todo mundo realmente deveria prestar atenção ao analisar o desempenho de um carro em seu uso diário: a entrega de torque. A estratégia da nomenclatura deu certo porque todos esses motores têm uma coisa em comum: a excelente entrega de torque - excelente pela quantidade e pela forma como é entregue, desde os regimes de rotação mais baixos devido ao tamanho reduzido da turbina que "enche" mais rápido. Isso deixa o carro muito mais esperto e disposto em todas as circunstâncias de direção, o que faz com que o consumidor esqueça se o motor é 1.0, 1.3, 1.4 ou qualquer coisa assim - o que quase não faz diferença quando se fala de turbinados.

Potência é bom, mas torque é ainda melhor. Os picos de potência só se manifestam em rotações muito altas que dificilmente são atingidas na condução cotidiana; já os picos de torque aparecem desde os giros mais baixos nos novos motores turbinados de baixa cilindrada, uma vez que as turbinas pequenas conseguem atuar mais cedo e, com isso, já começam a enriquecer a mistura ar/combustível para entregar o máximo de torque possível (ou quase o máximo) desde rotações baixas, melhorando e MUITO a condução do dia-a-dia e, consequentemente, diminuindo bastante o consumo por exigir menos aceleração da parte do condutor.