segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Memórias do Ravito: um final de semana com o único Toyota GT86 manual do Brasil

Texto e fotos por Yuri Ravitz

Não é todo dia que se vê um GT86 estacionado normalmente... Não no Brasil.

Hoje quero iniciar uma breve série onde pretendo contar histórias curiosas, divertidas e/ou interessantes que ocorreram em minha carreira de jornalista automotivo. Ela se chamará "Memórias do Ravito" e, para inaugurar, achei bacana começar por um dos carros mais icônicos que já tive a oportunidade de dirigir: o Toyota GT86. Meu primeiro contato com ele foi em 2012, ano em que a marca apresentava o inédito Etios para o mercado brasileiro e, para isso, decidiu organizar uma exposição itinerante onde mostrava alguns carros diferentes (como o híbrido Prius), o próprio Etios em carrocerias hatch e sedan junto de alguns conceitos e, como um chamariz a mais para o evento, o GT86.

Primeira vez em que vi o GT86 ao vivo. Não podia imaginar que, anos depois, estaria ao volante de um.

A Toyota estudava lançar o esportivo no Brasil e aproveitou o evento do Etios para medir a recepção do público. Para isso, ela importou oficialmente dois exemplares iguais na cor vermelha: a única diferença entre eles era a transmissão, sendo um automático e o outro, manual, ambos com seis marchas. O que estava no evento que fui, organizado no estacionamento do Barra Shopping, era o automático e é evidente que, assim que cheguei, fui direto para ele. Ainda nem sonhava com a carreira de jornalista, então, não tinha interesse algum em conhecer o Etios, embora, o conceito com pegada de carro de corrida exposto ao lado do GT fosse visualmente interessante.

Tentei acomodar meus 1,80m no banco traseiro do GT. Sendo um coupé 2+2, é claro que não deu certo.

A melhor parte é que, com exceção do Etios "dicurrida", todos os veículos expostos estavam com acesso total liberado e, como era de se esperar, boa parte das atenções estava voltada para aquele carro vermelho e baixinho de design arrojado que destoava dos demais presentes. Assim que tive a oportunidade, consegui entrar e literalmente "fuxicar" o GT86 em detalhes: abri o capô e o porta malas, sentei no banco do motorista e (tentei) no traseiro... Como estava acompanhado, pedi para que a companhia registrasse aquela que, para mim, seria a única oportunidade de conhecer aquele carango de perto. Eu não fazia ideia do que me aguardava alguns anos depois.

Eu só voltei a ter contato com o pequeno japonês quatro anos depois, em 2016, mas em uma circunstância muito diferente e bem mais interessante. Na época, eu já havia comemorado o primeiro ano de existência do Volta Rápida e alguns meses de um estágio/parceria com um antigo site carioca com o qual eu produzia matérias de avaliação de lançamentos. Um desses carros foi o próprio GT86 que, embora não fosse mais um lançamento, a Toyota havia decidido liberar o modelo para que a imprensa e produtores de conteúdo pudessem conhecê-lo melhor e produzir seu material. O editor-chefe do site trouxe o carro de São Paulo e me perguntou se eu tinha interesse em devolvê-lo. É claro que aceitei.

O GT86 não foi o mais caro a frequentar a garagem de minha antiga casa, mas foi o mais exclusivo.

Diferente do carro que conheci em 2012, o exemplar em questão tinha câmbio manual e fico feliz por isso, pois acredito que a experiência não teria sido tão prazerosa caso fosse automático; não tenho nada contra, mas acho que certos carros necessitam, obrigatoriamente, dos três pedais e de uma alavanca de câmbio com números ao invés de letras. Busquei o GT86 numa manhã ensolarada de domingo, no bairro da Penha (zona norte do RJ capital) e logo desci para a Av. Brasil, uma das principais vias expressas da cidade, em direção ao bairro de Guadalupe onde morei até pouco tempo atrás.

Por onde eu passava, as reações eram as mesmas: espanto, curiosidade, choque... Os olhares eram muitos, inclusive de outros motoristas, e o mais engraçado foi quando entrei na rua onde morava. Acontecia um churrasco na calçada de uma das casas próximas da esquina e, assim que virei, os presentes simplesmente pararam o que estavam fazendo e congelaram tentando desvendar que modelo curioso era aquele. Não tive problemas para colocá-lo na garagem apertada de minha antiga casa, pois é um carro bem pequeno e, ali, ele repousou um pouco até depois do almoço.

Levei o GT86 para desfilar pela orla da Barra, lugar conhecido pelos carros excêntricos que vivem passando.

Passado o almoço, levei o GT86 para uma volta pela cidade. Saí de Guadalupe e atravessei alguns bairros até a praia, fazendo um caminho mais longo do que o tradicional para poder sentir o carro e aproveitar cada momento, pois sabia que dificilmente teria outra oportunidade e, além disso, precisava apurar tudo o que podia para a matéria que viria. Não foram poucas as vezes em que outros motoristas buzinaram e abriram a janela para elogiar o carro e/ou perguntar que modelo era aquele. Alguns chegaram a piscar os faróis ou sinalizar de outras formas que queriam "disputar" para ver do que ele era capaz, mas eu só queria aproveitar o momento sem pressa... e assim segui, porém, com algumas paradas obrigatórias para cliques.

Como não tinha uma câmera na época, fiz todo o material do GT86 com o celular...

Com a minha família me acompanhando no nosso carro da casa (pois sempre gostamos muito de passear), rodei ao volante do GT86 até anoitecer. Por volta de umas 19 horas, decidimos nos dirigir ao antigo restaurante de um amigo, que ficava no bairro de Vista Alegre, para jantar. A região é conhecida pelo burburinho ocasionado pelos muitos restaurantes e bares que atraem todo tipo de público, inclusive, alguns donos de carros mais chamativos. Estacionei ao lado de um Camaro também vermelho, mas foi engraçado ver que praticamente ninguém notava o americano tendo o GT tão próximo. Muitas pessoas paravam para olhar de perto, tentar ver por dentro, tirar fotos nele e eu, assistindo da nossa mesa, me divertia por saber que faria a mesma coisa estando naquela posição.

Não demoramos no jantar porque a segunda-feira que se aproximava seria longa e agitada: eu tinha um carro para devolver em outro estado e mais de 400km de estrada para percorrer, então, precisava dormir bem e acordar 100% para a viagem. No intuito de me ajudar com as despesas e toda a logística da viagem, meus pais foram comigo em nosso carro da casa e, por volta das 7 horas da manhã, saímos do RJ rumo a SP; nosso destino era a fábrica da Toyota em São Bernardo do Campo, inaugurada em 1962 e a primeira da marca fora do Japão. Com o tanque totalmente abastecido, saímos pela Av. Brasil até a BR-116, no trecho que liga as capitais Rio de Janeiro e São Paulo, popularmente conhecido como Via Dutra.

As seis marchas são bem escalonadas e garantem viagens confortáveis.

Dotada de uma excelente pavimentação, muitas retas e trechos curvilíneos com longas subidas, a Via Dutra é uma ótima "prova de fogo" para qualquer carro e foi uma grande oportunidade para testar o comportamento dinâmico do GT86. Os números de seu motor 2.0 naturalmente aspirado não impressionam: são 200cv e 20,9kgfm de picos de potência e torque, mas coloque-os em um corpo compacto que pesa pouco mais de 1.200kg ao todo (distribuídos em 53% na frente e 47% atrás), adicione tração traseira e monte os cilindros contrapostos para resultar em um carro de direção extremamente afiada, confiante e divertida. Eram raras as vezes onde eu precisava frear antes de uma curva, tamanha a segurança que o GT86 passa ao condutor.

O mais interessante do japonês é que ele pede para ser conduzido e deixa isso evidente até nos detalhes. A posição de dirigir, baixa como em esportivos de maior calibre, reforça a sensação de que o carro está "grudado" ao chão e faz o motorista se sentir piloto. Os pedais são leves e o câmbio é muito tranquilo de operar, permitindo ao 86 ser guiado tranquilamente mesmo nos bagunçados centros urbanos e até mesmo ser um bom daily driver. Ele chega a oferecer alguns "mimos" como faróis bixenon adaptativos e ar condicionado de duas zonas, entretanto, não espere luxos: o sistema de entretenimento é pobre assim como o acabamento, e o ar condicionado deixa passar a caloria do motor caso a recirculação não seja utilizada - não é à toa que o sistema já a ativa automaticamente ao se ligar o ar. São detalhes que incomodariam em qualquer carro, mas que a gente deixa passar no GT86.

Já em São Paulo, perto de rodar os quilômetros finais...

Rodei mais de 600km com ele e tudo o que posso dizer é: queria ter rodado mais. Lamentavelmente, por algum motivo que desconheço, a Toyota optou por não comercializá-lo oficialmente no Brasil e, até onde eu sei, a marca libera seu uso para seus funcionários mediante agendamento. Gostei muito da experiência com o GT86, embora tenha sido breve, e digo com certeza que está longe de ser um dos melhores carros que já dirigi; a ideia dele é ir além do conceito frio e elementar de um mero carro, sendo mais uma experiência do que um mero meio de transporte. Desse ponto de vista, afirmo que ele proporciona uma das melhores experiências automotivas que eu já vivi.

Caso fosse vendido por aqui, custaria algo entre 120 e 150 mil reais na época. Tenho certeza que muitos não comprariam, afinal, ele não entrega a ostentação e o luxo de um alemão premium e, para piorar, está longe de se enquadrar nos padrões dos carros modernos. Motores turbinados, transmissões automáticas ultrarrápidas, interiores revestidos com as bochechas macias e suaves de querubins, conectividade avançadíssima... Ele abre mão de tudo isso em prol de entregar a mais pura conexão homem-máquina que um carro idealizado em seu tempo poderia e é exatamente isso que o torna tão especial.